quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

A pessimista na Casa Branca




Tinha tudo pra dar errado, só que no trailer dirigido por meus neurônios era o apocalipse. Nada de altos e baixos como em qualquer roteiro normal, comigo era fundo do poço. All the time. Tinha deportação, prisão, humilhação e óbvio, plateia. Afinal, não há drama se o mundo não está ali pra ver.
E olha que o otimismo ecoava de todos os lados, da terapeuta, do marido, dos amigos, mas lá dentro, na minha membrana plasmática, eu já sabia do desastre que me aguardava. Era muita audácia acreditar que uma brasileira pessimista e azarada entraria na terra de Trump com dois cães claramente ingleses, sangue azul, farsantes de vira-latas. Come on!
O prenúncio da catástrofe já deu sinais no caminho do Galeão. Um carro de polícia acidentado parou o Rio de Janeiro. Ah, mas isso é muito clichê! Batido demais pra uma habitué das leis de Murphy. Eu tinha cinco horas de antecedência do voo, podia de fato rolar o apocalipse que ainda assim daria tempo de embarcar. Ok, essa foi moleza, que venha o próximo obstáculo.
O entrave barra pesada tinha nome, Lúcia, quase o Lúcifer. Só não era tão do mal porque gostava de cachorro. Só que gostar nesse caso é eufemismo, porque a diaba era obcecada por bichos. De cara se queixou das dimensões da caixa de transporte. Queria um castelo com cama, mesa e banho pra cada um. Haja lábia pra contradizer uma fanática. Até convencê-la se foi uma boa dose de paciência. Depois veio a desculpa da temperatura. No destino final fazia frio suficiente pra barrar os animais. Ai meu Deus, meus lábios e saliva pra protestar contra a funcionária infeliz. E nisso a membrana plasmática estava lá, à tona, berrando pra todas as vísceras e neurônios que a missão falharia. Se não fosse o marido um verdadeiro rei da oratória, meu destino final teria sido o Itanhangá em vez de Washington D.C. 
No guichê ao lado, um americano também tentava embarcar com um cão, que atenção: era milimetricamente similar aos meus. Ignorante da regra de que essa raça específica não pode viajar de avião, declarou o tipo canino de mão beijada à companhia e obviamente, foi impedido de embarcar. À essa altura, eu prestes a convencer Lúcia de que o frio não era um problema, tive que rebolar pra que o americano indignado não percebesse que meus cães não tinham nada de vira-latas. Eram provavelmente, primos do seu. Oh my god! Foi um funk do Mr Catra, um pagodão do Thiaguinho, uma salsa e merengue no sassarico.
Deu certo! Entre trancos e barrancos, Lúcifer e americano, eu embarquei. Rumo à White House. Seja o que Trump quiser! Só que o piloto resolveu entrar no ritmo da salsa e o avião foi sacolejando até Miami, onde eu faria conexão. Lá o medo era da imigração. Por quê você veio? Que cachorros são esses? Pra onde vão? Tanta interrogação, quanto tensão. Na fila, preparando o psicológico para o interrogatório, percebi as mãos trêmulas, enfiei no bolso. Era efeito da membrana plasmática já eufórica com os policiais fardados de impiedade. Uma lágrima beirava o limite do olho esquerdo, pronta pra escorrer e então, o guarda mais simpático me chamou. Nenhuma pergunta, apenas um sorriso e um carimbo. No way! Era muita sorte pra uma pessimista tão convicta. Membrana plasmática mandou logo: aí tem...
Os cães me esperavam ao lado das bagagens. Vivos e serelepes. Uma pausa pra comida, água e passeio. Tudo certo e embarque novamente. Essa maré mansa já trazia um cheirinho de barbárie no ar. Era o clímax do roteiro que estava por vir. 
A fila da alfândega dava voltas intermináveis e foi o primeiro momento em que enfim, relaxei. Um passo a cada 20 minutos e um check no Instagram. Hummm, Marcela está comendo num restaurante mara! Olha a Mary brindando no BG, a Nina passeando com o Jobi, ah que saudade já estou do Rio. Imersa na nostalgia não percebi que um cachorro me seguia. Era o farejador de drogas da polícia americana hipnotizado por mim. Finalmente ouvi rumores de todos os lados, olhares reprovadores, foco em mim. Travei assustada, envergonhada, humilhada. Aos gritos de "go on!" a oficial me encaminhou a um canto todo especial.
A membrana plasmática já comemorava em alto e bom som quando o espírito da Fernanda Montenegro incorporou em mim. Envaidecida da mesma elegância da diva do cinema argumentei em prosa e verso que por estar com dois cães carregava ração em minha bolsa, o que obviamente justificava a obsessão do farejador. Não convenceu, mesmo assim Fernandona desceu do salto apenas porque teve que tirar os sapatos. Vasculharam cada compartimento da bolsa e ainda desconfiados me levaram a uma sala particular. Lá fui obrigada a me despir, mas Fernandona seguia inabalável, com a mesma paz de quem toma sol na praia de nudismo. Ao me vestir, outra policial cismada iniciou uma conversa investigativa. Todos os questionamentos que não me fizeram na imigração agora eram disparados como tiros de fuzil. Porém, Fernandona também é safa, honey e rebateu cada bala com respostas fofas e cativantes. So easy, baby!
Em poucas horas eu desembarcava com dois cães em D.C. O trio estava são e salvo, exceto pela membrana plasmática, que tomou um cala boca porque em terra de Trump não há espaço pra fake news.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Herói


Melhor amigo. Um clichê inacabado. Porque sua existência transcende a definição banal pra cães. É que amizade é algo pequeno pra amplitude de seu coração. Mesmo que seu nome carregue esse signo "amigo" no idioma da Indonésia, você não é tão simplista assim, sabemos bem. Nós dois temos uma história muito mais complexa pra contar.
Eu sei, nosso santo não bateu de cara. Você implicava com seu meio-irmão e isso me tirava do sério. Revidei suas provocações, como uma garota mimada. E você me deu um baita susto. Um arranhão por ciúmes. No rosto e na alma. Logo catei meus pedaços e compreendi seu recado. Foi então que começamos a nos entender. Um respeito mútuo, palpável, sólido. Tão sólido quanto seu físico, um exímio macho alfa, musculoso, rígido e no íntimo, sensível, delicado. Um Lindt daquele vermelho. Denso por fora, cremoso por dentro. 
Não encarava. Fazia pelo cantinho dos olhos, como um fã apaixonado. Mas nada de histeria, excitação. Sua onda é tranquila, de boa, zen. Recolhia-se de baixo dos móveis e ali vivia o nirvana. Em paz, feliz. Porque com você nada é normal. Cada gesto é especial. "Não é cachorro, é um gato", dizia a oposição. Na verdade, sagaz. Legítimo lord inglês, dono de todas as nuances da boa educação. Não pular, não latir, não lamber. Regras de etiqueta incorporadas como ideologia de vida. Que classe...
Foi fácil sacar o porquê do desprezo pelo meio-irmão. De baixo do guarda-sol, imponente, majestoso, um nobre, adorava pender olhares desdenhosos ao parente farofeiro. Ele se autoempanava nas areias de Grumari e você ali, esboçando um esnobe sorriso, como quem faz pouco caso. É que seu caso tinha outro nome. Júlio. Seu rei, seu deus. Ele surfava nas ondas, lá tão longe, ainda assim seus olhos o fitavam, atentos, a cada manobra, a cada rajada de vento. Era pra isso que você estava ali. Não era pela praia, não era por mim ou pra tirar sarro do irmão, era pra cuidar do seu ídolo. O ápice da lealdade na sombra de uma barraca de praia.
E a vastidão do coração conservava-se tão imensa que somou outros dois nomes. Dora e Maria. Os casos de amor mais sinceros que já se manifestaram no mundo. Como um herói gigante, você lutou em três frentes, pra expressar a fidelidade na mais possível plenitude. Teman, triplamente fiel escudeiro. Ta aí mais um clichê, mas esse te cabe com exatidão.
Até que foi moleza pra você e foi lindo de se ver. Apesar da lástima que era jamais conseguir levá-lo pra passear. Porque um dos três tinha que estar ao seu lado, que mania! Um cara cheio de personalidade, totalmente homo sapiens. Cão com ego humano, onde já se viu? Eu vi, nós vimos.
Tudo isso, companheiro, só pra te dizer que foi um privilégio dividir o quarto com você. Preciso digerir sua perda a conta-gotas, não é nada fácil. Porque você não é um soldado, é um exército inteiro, é multidão. Entendo que fizemos um pacto de proteção e te agradeço pra todo sempre. Lutar com uma cobra não é amizade, ou fidelidade. É muito além, Teman, é heroísmo. 
Obrigada.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Vem mais pra cá


Quando a gente se conheceu você não me deu muita bola. Expectativas me infartavam e você pra lá e pra cá. Só que mais pra lá do que pra cá. Me ofereceu champanhe, logo vi que era das minhas. Deixou que os outros me perguntassem endereço, profissão e todo aquele blá blá blá. Da cabeceira, me observava, às vezes séria, outras sorridente. E que sorriso... Alguns goles depois e foi sorrindo mais e mais e me encantando mais e mais. Então vocês se conheceram em Trancoso? Assim você inaugurou nossa primeira de tantas conversas.

Não podia te contar que já estava apaixonada, precisava respeitar os ritos de início de relacionamento. Fazer de durona, mulher bem resolvida, exatamente como você é, sabe? Acho que a interpretação convenceu, pelo menos com seu filho colou. Mas aí você contou da sua casa em Mauá e do quanto curtiu a juventude na Maromba e em Maringá, pronto, me partiu no meio. E é conhecida da Carlinha, quem diria, parceira querida da minha avó. Não existem coincidências, eu nasci pra ser sua melhor amiga, estava muito claro pra mim.

Aí veio o seu aniversário. Aquariana como eu, um golpe fatal. A amizade predestinada estava atestada e certificada com firma reconhecida. Mas era muita afinidade, faltavam uns contrastes pra dar um tempero no nosso paladar infantil. Tudo bem, eu merecia uma adrenalina na minha alma pacata. Sua voltagem nas alturas logo me deu injeções de cafeína. Não alcancei ainda os seus 220, mas ao menos saí do zero. Foi um sacode, bom e necessário. 

Eu, tranquila, vivendo em doses homeopáticas. Você, super ativa, fazendo e acontecendo. Encontrei meu equilíbrio perfeito. Só comigo você poderia ficar meia hora presa num elevador. Sua claustrofobia não teve a menor chance perto da minha calma quase nirvana. Você sobreviveu e sei que fui o seu melhor Frontal.

A gente é assim, uma gangorra que não desequilibra nem quando uma indecisa vai ao Saara. Tantas lojas, tantas opções, só com você eu poderia sobreviver àquele mar de dilemas. E tudo se resolveu em minutos e a festa foi um sucesso e você me deu um abraço de mãe.

Depois tomei uma porrada daquelas e já dava como certa uma profunda depressão, mas nosso barco balança mas não tomba. Você me acolheu e sussurrou que tudo ficaria bem. E foi tão doce e fraterno que por um lapso senti de novo como é ter mãe. 

Agora veio a Copa e torcemos quase todos os jogos juntas, mesmo depois daquele inesquecível 7 a 1, que vimos na sua casa, abismadas, sem trocarmos uma só palavra. E estou te devendo uma aula de como passar lápis de olho e também uma ida ao teatro. Vamos organizar suas fotografias e bater perna em Nova York, tipo best friends. Não é que eu tava certa? 

Então vem mais pra cá, aceite uma taça de champanhe e vamos brindar a essa amizade de firma reconhecida. Você não é sogra, nem segunda mãe, é minha melhor amiga.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

O grande encontro


Juninho trocou de turno no Jobi pra curtir a noite mais especial do ano. Era a grande festa de celebração ao dia do garçom, não perderia por nada. Recolheu as últimas gorjetas, mas logo bateu a frustração, é que o "faz-me rir" na madruga é muito superior aos trocadinhos da tarde. Bando de mão-de-vaca! Mas nada o desanimaria, até o Baixinho lá do Hipódromo já tinha dado o papo: esse ano a Feira de São Cristovão vai abaixo! A cobra vai fumar e geral vai bailar até o sol raiar. Sente o clima.

Lançou aquele Acqua de Gio, presente de um playboy, seu melhor cliente. De bobeira nem nada, chamou logo um Uber, não ia de busão 460 nem de graça! Aquela lata de sardinha nunca que ia zoar seu traje de gala.

Muita cerveja e pinga à vontade! O Paulinho também trocou de turno lá no Braseiro e mandou ver nas caipirinhas, batidas e uns drinques doidos. Além de garçom, o queridinho da playboyzada do BG, também tirava onda como barman. Sacoleja dali, sacoleja daqui, com aquele sorrisão sempre estampado na lata, tava molinho de pegar uma das garçonetes do Belmonte. Estavam em patota, deslumbradas com o talento e o carisma do moço.

De longe já se via a Jane do Alemão requebrando na pista. O que tem de braba, tem de ginga. Dizem que bota qualquer alemão pianinho, mas tem um molejo, a danada queeeebra no forró. Só mesmo o João de Deus pra sair lá da calmaria do Hipódromo pra se arriscar em São Cristovão puxando a Jane pra dançar. "Ele amansou a fera só porque tem nome religioso", invejava o pessoal do Brewteco. "É isso não, rapá, nunca ouviu falar que é dos carecas que elas gostam mais?", disparou Juninho alisando orgulhoso a cabeça.

O forró rolava solto até que chegou a galera do Bracarense com suas marchinhas de Carnaval. Tocaram Cabeleira do Zezé, Cachaça Não é Água, Aurora... Jane botou no chinelo tudo que é garçonete metida a rainha da bateria. O pessoal do Guimas, que morria de medo da vizinha de bar, abriu a roda pra morena rodopiar.

À essa altura, o Baixinho já tava pra lá de bagdá. Juninho segurou as pontas do amigo, era craque em lidar com doidão. Deu água, Coca, café. Gelo na testa, pescoço e quando se deu conta, acabou a festança. Perdeu as últimas horas salvando o safado do Baixinho.

- Tão pequenininho não pode beber tanto assim, nem cabe no seu corpo.

- Zoa não, Juninho, já to até careta de novo. Mas e agora? Cabô, cabô?

- Que nada! Partiu Jobi!

domingo, 6 de maio de 2018

Sua presença




Nove anos sem você. Lágrimas secaram e vi a dor se despedaçar, assim rasgando, se decompondo, esfarelando em migalhas e esvaindo como fumaça. O nó na garganta lentamente afrouxou até desatar por completo. As lembranças ainda são doces, acredite, talvez nunca percam o sabor, mas as cores se foram. Já te vi em tons de amarelo, preto e branco, agora só branco, seu rosto quase transparente. 

Minha mente se abriu a um vazio sem fim, a ignorância tomou conta de mim. Parei de escrever, de ir ao cinema, de estudar, de rir até chorar. Congelei cada milímetro do corpo, caí em desgosto. Tudo ficou tão chato, sem sentido… Ao menos passei a gostar de vinho, me faz lembrar de você. Não gosto mais da praia, do sol, sua filha praiana agora sufoca no verão. 

Mas hoje algo aconteceu. Tonteiras estão sacudindo meu imenso iceberg, pasteurizando como liquidificador a tristeza petrificada. As lágrimas aos poucos derretem e transbordam deslizando de novo como um milagre. 

É o despertar de um pesadelo tão profundo que volto a sentir seu abraço apertando contra meu coração, vibro na sua pulsação. Ouço lá longe sua voz, é mesmo apaixonante. Devagar, seus olhos pintados ganham cor e forma. Esse olhar que conforta, acolhe e me enche de vida. Minha essência aos poucos brilha. 

Mãe, amanhã acho que vou à praia.