Não, por enquanto você ainda não vai me ver pendurada tentando me equilibrar no teto de um trem do Rio de Janeiro, mas posso te garantir que como boa carioca até que me saí super bem na minha mais recente missão rumo à Cascadura.
Entrar num novo emprego tem dessas coisas. Do nada você pode se ver correndo pelo centro da cidade atrás dessas empresas no minimo muito esquisitas para fazer exame admissional, homologação e todas essas burocracias que fazem parte do humilde mundo da classe trabalhadora. E é aí que surgem essas sinucas de bico. Quando você perceber já estará matutando na cabeça como vai fazer para achar uma vaga no centro ou pior, como fará para chegar no so far far way reino de Cascadura.
Mas a casca era mais mole do que dura. Andar de trem definitivamente não é um bicho de sete cabeças. Ta certo que ousei até demais dando uma de playboy que vai para o centro de carro. Mas como meu amigo Murphy tava muito ocupado com outras vítimas nesse dia, meu anjo da guarda entrou em cena e me arranjou uma super vaga bem em frente à estação de onde eu partiria para minha missão: a Central!
Desculpe a total ignorância e alienação da bolha em que sempre vivi, mas para mim Central me parecia um lugar medonho com um relógio pavoroso e gigantesco frequentado apenas por vândalos surfistas de trem, além claro da minha empregada, única pessoa de bem que insiste em passar por ali só para não enfrentar o trânsito do subúrbio. Mas não é bem assim.
"Senhoras e senhores, tenho aqui um CD com mais de mil sucessos da música gospel. É sucesso de ontem, de hoje e de eternamente. São apenas dois reais para ouvir Jesus. É sucesso de ontem, de hoje e de eternamente", insistia repetidamente com esse grito de guerra um dos vinte ambulantes que se amontoavam no meu vagão. Em apenas quatro estações vi o cara vender uns dez CDs. Água, relógio, lápis, caneta, tinha de tudo. Era um saara ambulante.
Dois caras do meu lado me fizeram sofrer para conseguir disfarçar a vontade louca que estava de gargalhar. Confesso que eu não estava nem um pouco feliz de estar enfurnada naquela sauna imunda a caminho do subúrbio, mas as histórias daquela dupla me arrancaram sorrisinhos cautelosos. Os apelidos são realmente de uma criatividade de tirar o chapéu: chouriço, espiga, Bob Marley, nariz, cachorro louco, Mussum, geleia e por aí vai. Todos os personagens das histórias eram chamados por apelidos. Dentre as surrealidades, uma merece destaque. O cara estava no baile funk, encheu a cara de pinga, ficou com a boca seca, morto de sede até que avistou um galão de "água" dando sopa na quadra. Vibrou de emoção e "malandramente" se apossou do galão e virou com tudo na mais fervorosa ânsia por água. O gole foi daqueles caprichados, bem de macho mesmo com a goela toda escancarada. Mas como dizem que alegria de pobre dura pouco e que pão de pobre sempre cai com a manteiga virada para baixo, a água não tinha nada de Minalba. Era cloro puro.
"Fiquei boladão por causa de que na mesma horinha lembrei de um camarada que quase morreu bebendo cloro. No desespero, arrumei logo uma caixa de leite e virei ela todinha. E olha que nem gosto de leite heim! Mas neguinho também é foda, não ta de bobeira nem nada, me empurrou logo um leite com cachaça. Aí meu irmão, fudeu geral, fiquei bonecão e o Bob Marley ficou cheio de caô pra cima de mim". O cara não é um gênio? Virei fã.
Cheguei em Cascadura não só sã e salva, como toda espertinha me sentindo já a local da baixada. Achei o endereço em menos de cinco minutos. Fui num pé e voltei no outro me sentindo a mulher mais gata do Rio de Janeiro depois de ganhar uma cantada a cada esquina. Problemas de autoestima? Vá para Cascadura, monsieur!
Andar de trem sem dúvida foi uma experiência inesquecível. Uma outra realidade que na verdade, está muito mais perto do que muita gente imagina. Não gosto de música gospel, não comprei nenhuma bugiganga e juro que nunca bebi cloro, mas vi que debaixo daquele relógio horroroso existe muita gente simples, mas feliz. Como já dizia um rap das antigas e faço questão de cantar, da zona sul à zona norte o que eu quero é surfar.