Lá estava eu gorda e voraz me lambuzando de catupiry e camarão. Cada mordida um orgasmo. A língua salivante dava cambalhotas na boca e as celulites se reproduziam em festa. Que alegria! O objeto do crime? Um suculento e impiedoso rissole recheado da mais alta perdição que se tem notícia.
Um caso indefensável, confesso. No entanto, euzinha aqui era a ré mais feliz do tribunal. Felicidade que sem dúvida tinha prazo de validade a vencer e eu sabia que o fim estava próximo. Os neurônios até já se esforçavam para aceitar sem muita dor que o último pedaço estava sentenciado. Era preciso otimizar cada mastigada da forma menos sofrida possível. Porém... Ah porém...
Nada como uma reviravolta num caso aparentemente óbvio. Na reta final da condenação eis que surge um cúmplice tão culpado quanto eu. Um dos homens mais cruéis e desalmados da história. Ele não só cometeu um pecado atroz quanto duplicou sua pena ao consumar o pecado do pecado. Nem Judas seria capaz de tamanha barbaridade. Não foi apenas uma traição. Foi uma emboscada.
Tudo aconteceu em segundos. Minhas mãos posicionavam o último pedaço entre os dedos trêmulos ainda não muito conformados com o fim. Ao me preparar para o ato final sorrateiramente outra mão, que definitivamente não era a minha, se materializou bem diante do meu nariz. Lá estava eu cara a cara, mano a mano, com uma cena tão insolente que desacreditei do que estava por vir.
Foi o tempo de a ficha cair para o mais petulante dos mortais raptar o último fragmento que me restava do rissole de camarão. Ele não só cometeu uma violência contra mim como impediu o meu grand finale. Qualquer juiz mequetrefe sabe que nem em terra de bandido comete-se uma atrocidade desse nível. Era o apocalipse.
Como alguém rouba um último pedaço? Cadê a moral deste ser? Cadê a ética da humanidade? Eram as perguntas que rondavam o júri antes da sentença final. Foi o suficiente para abrandar minha pena, que como se vê, já havia sido dura demais.
Tamanha injustiça me fez aprender na pele e no estômago a nunca dar mole com um camarão na mão, sobretudo o último. Já condenada pelo pecado da gula, ainda fui obrigada a concordar com o veredicto final dado a marteladas pelo juiz. "Fernanda, sua pecadora, que isto lhe sirva para dar mais atenção às sábias palavras do filósofo Zeca Pagodinho: camarão que dorme a onda leva". E leva mesmo...