quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Herói


Melhor amigo. Um clichê inacabado. Porque sua existência transcende a definição banal pra cães. É que amizade é algo pequeno pra amplitude de seu coração. Mesmo que seu nome carregue esse signo "amigo" no idioma da Indonésia, você não é tão simplista assim, sabemos bem. Nós dois temos uma história muito mais complexa pra contar.
Eu sei, nosso santo não bateu de cara. Você implicava com seu meio-irmão e isso me tirava do sério. Revidei suas provocações, como uma garota mimada. E você me deu um baita susto. Um arranhão por ciúmes. No rosto e na alma. Logo catei meus pedaços e compreendi seu recado. Foi então que começamos a nos entender. Um respeito mútuo, palpável, sólido. Tão sólido quanto seu físico, um exímio macho alfa, musculoso, rígido e no íntimo, sensível, delicado. Um Lindt daquele vermelho. Denso por fora, cremoso por dentro. 
Não encarava. Fazia pelo cantinho dos olhos, como um fã apaixonado. Mas nada de histeria, excitação. Sua onda é tranquila, de boa, zen. Recolhia-se de baixo dos móveis e ali vivia o nirvana. Em paz, feliz. Porque com você nada é normal. Cada gesto é especial. "Não é cachorro, é um gato", dizia a oposição. Na verdade, sagaz. Legítimo lord inglês, dono de todas as nuances da boa educação. Não pular, não latir, não lamber. Regras de etiqueta incorporadas como ideologia de vida. Que classe...
Foi fácil sacar o porquê do desprezo pelo meio-irmão. De baixo do guarda-sol, imponente, majestoso, um nobre, adorava pender olhares desdenhosos ao parente farofeiro. Ele se autoempanava nas areias de Grumari e você ali, esboçando um esnobe sorriso, como quem faz pouco caso. É que seu caso tinha outro nome. Júlio. Seu rei, seu deus. Ele surfava nas ondas, lá tão longe, ainda assim seus olhos o fitavam, atentos, a cada manobra, a cada rajada de vento. Era pra isso que você estava ali. Não era pela praia, não era por mim ou pra tirar sarro do irmão, era pra cuidar do seu ídolo. O ápice da lealdade na sombra de uma barraca de praia.
E a vastidão do coração conservava-se tão imensa que somou outros dois nomes. Dora e Maria. Os casos de amor mais sinceros que já se manifestaram no mundo. Como um herói gigante, você lutou em três frentes, pra expressar a fidelidade na mais possível plenitude. Teman, triplamente fiel escudeiro. Ta aí mais um clichê, mas esse te cabe com exatidão.
Até que foi moleza pra você e foi lindo de se ver. Apesar da lástima que era jamais conseguir levá-lo pra passear. Porque um dos três tinha que estar ao seu lado, que mania! Um cara cheio de personalidade, totalmente homo sapiens. Cão com ego humano, onde já se viu? Eu vi, nós vimos.
Tudo isso, companheiro, só pra te dizer que foi um privilégio dividir o quarto com você. Preciso digerir sua perda a conta-gotas, não é nada fácil. Porque você não é um soldado, é um exército inteiro, é multidão. Entendo que fizemos um pacto de proteção e te agradeço pra todo sempre. Lutar com uma cobra não é amizade, ou fidelidade. É muito além, Teman, é heroísmo. 
Obrigada.