Tinha tudo pra dar errado, só que no trailer dirigido por meus neurônios era o apocalipse. Nada de altos e baixos como em qualquer roteiro normal, comigo era fundo do poço. All the time. Tinha deportação, prisão, humilhação e óbvio, plateia. Afinal, não há drama se o mundo não está ali pra ver.
E olha que o otimismo ecoava de todos os lados, da terapeuta, do marido, dos amigos, mas lá dentro, na minha membrana plasmática, eu já sabia do desastre que me aguardava. Era muita audácia acreditar que uma brasileira pessimista e azarada entraria na terra de Trump com dois cães claramente ingleses, sangue azul, farsantes de vira-latas. Come on!
O prenúncio da catástrofe já deu sinais no caminho do Galeão. Um carro de polícia acidentado parou o Rio de Janeiro. Ah, mas isso é muito clichê! Batido demais pra uma habitué das leis de Murphy. Eu tinha cinco horas de antecedência do voo, podia de fato rolar o apocalipse que ainda assim daria tempo de embarcar. Ok, essa foi moleza, que venha o próximo obstáculo.
O entrave barra pesada tinha nome, Lúcia, quase o Lúcifer. Só não era tão do mal porque gostava de cachorro. Só que gostar nesse caso é eufemismo, porque a diaba era obcecada por bichos. De cara se queixou das dimensões da caixa de transporte. Queria um castelo com cama, mesa e banho pra cada um. Haja lábia pra contradizer uma fanática. Até convencê-la se foi uma boa dose de paciência. Depois veio a desculpa da temperatura. No destino final fazia frio suficiente pra barrar os animais. Ai meu Deus, meus lábios e saliva pra protestar contra a funcionária infeliz. E nisso a membrana plasmática estava lá, à tona, berrando pra todas as vísceras e neurônios que a missão falharia. Se não fosse o marido um verdadeiro rei da oratória, meu destino final teria sido o Itanhangá em vez de Washington D.C.
No guichê ao lado, um americano também tentava embarcar com um cão, que atenção: era milimetricamente similar aos meus. Ignorante da regra de que essa raça específica não pode viajar de avião, declarou o tipo canino de mão beijada à companhia e obviamente, foi impedido de embarcar. À essa altura, eu prestes a convencer Lúcia de que o frio não era um problema, tive que rebolar pra que o americano indignado não percebesse que meus cães não tinham nada de vira-latas. Eram provavelmente, primos do seu. Oh my god! Foi um funk do Mr Catra, um pagodão do Thiaguinho, uma salsa e merengue no sassarico.
Deu certo! Entre trancos e barrancos, Lúcifer e americano, eu embarquei. Rumo à White House. Seja o que Trump quiser! Só que o piloto resolveu entrar no ritmo da salsa e o avião foi sacolejando até Miami, onde eu faria conexão. Lá o medo era da imigração. Por quê você veio? Que cachorros são esses? Pra onde vão? Tanta interrogação, quanto tensão. Na fila, preparando o psicológico para o interrogatório, percebi as mãos trêmulas, enfiei no bolso. Era efeito da membrana plasmática já eufórica com os policiais fardados de impiedade. Uma lágrima beirava o limite do olho esquerdo, pronta pra escorrer e então, o guarda mais simpático me chamou. Nenhuma pergunta, apenas um sorriso e um carimbo. No way! Era muita sorte pra uma pessimista tão convicta. Membrana plasmática mandou logo: aí tem...
Os cães me esperavam ao lado das bagagens. Vivos e serelepes. Uma pausa pra comida, água e passeio. Tudo certo e embarque novamente. Essa maré mansa já trazia um cheirinho de barbárie no ar. Era o clímax do roteiro que estava por vir.
A fila da alfândega dava voltas intermináveis e foi o primeiro momento em que enfim, relaxei. Um passo a cada 20 minutos e um check no Instagram. Hummm, Marcela está comendo num restaurante mara! Olha a Mary brindando no BG, a Nina passeando com o Jobi, ah que saudade já estou do Rio. Imersa na nostalgia não percebi que um cachorro me seguia. Era o farejador de drogas da polícia americana hipnotizado por mim. Finalmente ouvi rumores de todos os lados, olhares reprovadores, foco em mim. Travei assustada, envergonhada, humilhada. Aos gritos de "go on!" a oficial me encaminhou a um canto todo especial.
A membrana plasmática já comemorava em alto e bom som quando o espírito da Fernanda Montenegro incorporou em mim. Envaidecida da mesma elegância da diva do cinema argumentei em prosa e verso que por estar com dois cães carregava ração em minha bolsa, o que obviamente justificava a obsessão do farejador. Não convenceu, mesmo assim Fernandona desceu do salto apenas porque teve que tirar os sapatos. Vasculharam cada compartimento da bolsa e ainda desconfiados me levaram a uma sala particular. Lá fui obrigada a me despir, mas Fernandona seguia inabalável, com a mesma paz de quem toma sol na praia de nudismo. Ao me vestir, outra policial cismada iniciou uma conversa investigativa. Todos os questionamentos que não me fizeram na imigração agora eram disparados como tiros de fuzil. Porém, Fernandona também é safa, honey e rebateu cada bala com respostas fofas e cativantes. So easy, baby!
Em poucas horas eu desembarcava com dois cães em D.C. O trio estava são e salvo, exceto pela membrana plasmática, que tomou um cala boca porque em terra de Trump não há espaço pra fake news.